Unidade 731 - O Surgimento

Esta semana para variarmos um pouco, publicarei um trabalho de história da medicina, escritos por mim, e pelo Guilherme (83). Existe pouco escrito atualmente sobre a a Unidade 731 no Brasil, portanto, acredito que seja do interesse de muitos. O intervalo entre as postagens será menor, ocorrendo a cada 4 ou 5 dias. Não esqueça de nos adicionar a seus Favoritos no menu a direita.

Do Surgimento da Unidade 731


Apesar de uma longa história de esforços e lutas na tentativa de salvar vidas e reduzir o sofrimento dos pacientes, algumas vezes a medicina tem sido usada para fins distorcidos. O conhecimento adquirido capaz de curar, também pode ser usado para aumentar a eficiência de matar. Um exemplo reconhecido mundialmente foram os estudos nazistas realizados em campos de concentração durante a segunda guerra mundial. Poucos sabem, no entanto, que o oriente apresentou um modelo bem parecido no mesmo período histórico. Entre 1932 e 1945, médicos japoneses realizaram inúmeros experimentos com prisioneiros de guerras e civis, incluindo tratamentos desumanos e vivisseções (NIE, 2002).

Partindo da observação real de que mais soldados morriam de causas infecciosas do que em batalhas, o governo japonês criou diversas unidades para a pesquisa de prevenção de doenças em soldados japoneses, bem como estudos que pudessem aumentar a mortalidade infecciosa em inimigos militares ou civis (POWELL, 2006). Acredita-se que ao longo de 13 anos de pesquisa, 10.000 cobaias humanas tenham perdido suas vidas diretamente e que outros 200.000 teriam morrido em conseqüência de surtos epidêmicos. Dentre as vítimas haviam chineses, russos, coreanos, europeus e americanos (KLIETMANN, 2001)(CHANG, 1999).

A mais famosa dessas unidades de pesquisa é conhecida como Unidade 731, tendo sido coordenada pelo general Shiro Ishii (foto), anteriormente professor de cirurgia da Universidade de Kyoto (WATTS, 2002). Criada em 1936, com sede localizada na região da Manchúria, na cidade de Pingfang, próxima a Harbin, a Unidade 731 chegou a ocupar 150 edificações e possuir 3000 funcionários, além de diversas unidades subsidiárias como as unidades 1855 (em Beijing), 200 (na Manchúria) e 9420 (em Cingapura) (BYRD, 2005). Na época recebeu o nome fictício de “Escritório de Purificação e Descontaminação de Reservatórios de Água”, não chamando qualquer atenção até próximo do fim da guerra (KLIETMANN, 2001) (CHANG, 1999).

Apesar de não ter assinado a Convenção de Genebra, que versa sobre a proibição de usos de armas biológicas, o governo japonês manteve suas equipes de pesquisa de armas biológicas em sigilo. As principais pesquisas realizadas pela unidade 731 consistiam em estudos sobre cólera, peste bubônica, malária, condições extremas e doenças sexualmente transmissíveis (altamente prevalente entre soldados de qualquer nação). Apesar da maioria dos pacientes terem sido prisioneiros de guerra, alguns eram civis raptados nas vilas conquistadas da China, da Rússia e da Coréia. A partir do momento em que eram alocados em pesquisas, os indivíduos perdiam seus nomes e
recebiam números de identificação. Entre os funcionários da Unidade, eram conhecidos como maruta, isto é “toras de madeira”. Essa despersonificação dos prisioneiros demonstra que, como nas pesquisas nazistas, estes não eram reconhecidos como seres humanos, mas apenas como cobaias (NIE, 2004).


Bibliografia

POWELL, T., Cultural context in medical ethics: lessons from Japan. Philosophy, Ethics and Humanities in Medicine. 2006 Apr 3;1(1):E4.

WATTS, J., Victims of Japan's notorious Unit 731 sue. The Lancet. 2002 Aug 24;360(9333):628. (WATTS, 2002)

NIE, J.B., Japanese doctors' experimentation in wartime China. The Lancet. 2002 Dec;360 Suppl:s5-6. (NIE, 2002)

NIE J.B., The West's dismissal of the Khabarovsk trial as 'communist propaganda': ideology, evidence and international bioethics. Journal of Bioethical Inquiry. 2004;1(1):32-42. (NIE, 2004)

KLIETMANN, W.F.; Ruoff, K.L., Bioterrorism: implications for the clinical microbiologist. Clinical Microbiology Reviews. 2001 Apr;14(2):364-81. (KLIETMANN, 2001).

CHANG, I. et al. The Asian-Pacific War, 1931–1945: Japanese atrocities and the quest for post-war reconciliation. East Asia Volume 17, Number 1 / March, 1999 ISSN 1096-6838 (CHANG, 1999)

BYRD, G.D., General Ishii Shiro: His Legacy is that of Genius and Madman. Thesis presented to the faculty of the Department of History East Tennessee State University, May, 2005, disponível no sítio http://etd-submit.etsu.edu/etd/theses/available/etd-0403105-134542/unrestricted/ByrdG042805f.pdf (BYRD, 2005)


Crianças podem ser vegan?

Alimentação vegan é polêmica por definição. A notícia da morte de uma criança vegan, por desnutrição, na Inglaterra, suscitou a dúvida de quão adequada seria essa dieta para crianças. Comumente, dietas vegetarianas são menos calóricas que dietas tradicionais onívoras. Esta restrição calórica é vantajosa para quem quer perder peso, contudo, poderia causar estragos no crescimento e desenvolvimento de uma criança.

Foram descritos casos na literatura de deficiência neurológica grave em uma criança de 14 meses, amamentada por mãe vegan. A causa apontada foi a carência de vitamina B12 (na dieta da mãe). A suplementação vitamínica por 10 semanas foi capaz de regredir todas as anormalidades observadas ao EEG, todavia, a cognição e a linguagem da criança ainda estavam comprometidos à idade de dois anos.

Por outro lado, um estudo de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianças vegan inglesas revelou que, apesar de elas geralmente se encontrarem abaixo do percentil 50 das curvas de desenvolvimento padrão, elas estavam dentro do canal, tanto para peso quanto para altura.
Clique para ver em tamanho maior o gráfico altura X idade de meninos vegan, quando comparados ao padrão inglês.

O estudo conclui que a alimentação vegan é capaz de favorecer o crescimento e desenvolvimento normal de uma criança, quando adequadamente balanceada para possíveis deficiências de B12 e Cálcio. As crianças vegan se encontrariam abaixo do percentil 50, segundo o autor, devido a superestimação da curva, feita a partir de média de crescimento infantil (que leva em conta, principalmente, crianças onívoras).

Como a nossa dieta habitual é muito pobre, geralmente as dietas vegetarianas são mais ricas em vitaminas, por serem mais variadas. Key et al. relatam que os vegetarianos até morrem menos por doenças cardiovasculares. Com as devidas cautelas (principalmente em relação a suplementação de vitamina b12) é possível a alimentação vegetariana para crianças (e para adultos também). Vide o site http://www.vegankids.org.

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Para responder essa pergunta foi feita a busca na Medline nos termos MeSH vegetarianism, com limites para estudos em crianças.

Referências:
Schenck et al. Persistence of neurological damage induced by dietary vitamin B12 deficiency in infancy. Archives of Disease in Childhood 1997;77:137–139
Sanders. Growth and development of british vegan children. Am J Clin Nutr 1988;48:822-5
Key et al. Mortality in vegetarians and no-vegetarians. Public Health Nutrition: l ( I ), 33-4

Hipertensão causa dor de cabeça?

É freqüente em consultórios pacientes que se queixem de dores de cabeça relacionadas a picos hipertensivos. Muitas vezes os pacientes sequer chegam a aferir a pressão, mas "sabem" que a dor é decorrente de hipertensão.

Em 1923, Janeway afirmou que enxaquecas eram comuns em pacientes com hipertensão, desde então a relação entre a pressão arterial e dores de cabeça foram examinadas em diversos estudos. No entanto, existe uma grande contradição se associações entres os 2 elementos realmente existem. A maioria dos estudos, por serem retrospectivos ou transversais, não são capazes de demonstrar, por princípio, qualquer relação de causa e efeitos. Sendo assim, após busca no PubMed*, escolhi um artigo prospectivo realizado na Noruega com 22.685 adultos.

O estudo foi realizado com dados de duas pesquisas epidemiológicas: o HUNT-1 (realizado entre 1984 e 1986) e o HUNT-2 (realizado entre 1995 e 1997). Em ambas as pesquisas valores de altura, peso, pressão arterial, pulso e nível de glicose foram examinadas. Infelizmente, no HUNT-1 não havia questionário sobre freqüência de dores de cabeça, isso representa certa limitação, mas não invalida o estudo.

Sendo um estudo prospectivo, desejava-se analisar se indivíduos com hipertensão estudados em 1984-1986 tinham maior chance de apresentar dores de cabeça ou enxaquecas. O preferível seria escolher pacientes que não apresentassem cefaléias em 1984-86. Como infelizmente isso não foi possível, foram selecionados os pacientes que referiram não ter usado analgésicos no mês anterior a pesquisa (essa pergunta estava presente no HUNT-1). Para evitar que fármacos anti-hipertensivos interferissem no resultado, a análise estatística foi repetida excluindo os 3.678 pacientes que usavam medicações.

O risco relativo de desenvolver dor de cabeça relacionado a pressão arterial aferida 11 anos antes pode ser conferida na tabela abaixo:

A resolução da imagem está baixa, mas se você clicar nela, é possível ler melhor os dados.


Resumindo, pressões sistólicas altas tendiam a ter uma associação com menor prevalência de dor de cabeça em todas as faixas etárias. Em ambos os sexos existia uma forte linha de tendência (p<0,002)>

Uma análise transversal dos dados do HUNT-2 apontam que altas pressões sistólicas estavam associadas à menor prevalência de cefaléia, sendo estatisticamente significante apenas no grupo "Todos tipos de dor de cabeça" e "Dor não-enxaquecosa" em mulheres.

Uma possível explicação biológica para a relação inversa entre pressão arterial sistólica e o risco de cefaléia pode ser um fenômeno denominado "hipoalgesia associada a hipertensão". Isto é, sabe-se que pacientes (e também ratos) com pressão alta apresentam menos dor. Acredita-se que o mecanismo envolva baroreflexos interferindo nos estímulos de dor.

Vale lembrar que apesar dos resultados deste estudo, casos de hipertensão graves e específicos cursam com cefaléia, dois exemplos clássicos são a eclâmpsia e o feocromocitoma.

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*Pesquisado no http://www.pubmed.com/ artigos com os termos “BLOOD PRESSURE” e “HEADACHE”, com limites para “título” e “estudos em humanos publicados nos últimos 10 anos em inglês/português/francês”, e houve retorno de 13 artigos. Foi escolhida o artigo:

Hagen K, Stovner LJ, Vatten L, Holmen J, Zwart JA, Bovim G.Blood pressure and risk of headache: a prospective study of 22 685 adults in Norway.J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2002 Apr;72(4):463-6.

Existe evidência que suplementos vitamínicos são benéficos?



O estresse oxidativo está envolvido na fisiopatogenia de muitas doenças e no processo natural de envelhecimento. Estima-se que 10 a 20% da população adulta dos Estados Unidos e Europa (80 – 160 milhões de pessoas) consumam suplementos antioxidantes, acreditando preservar sua saúde e prevenir doenças. Os antioxidantes deveriam diminuir os danos oxidativos às células e aumentar a expectativa de vida. Entretanto, as evidências de que suplementações são benéficas, não estão bem firmadas. Alguns estudos não encontram nenhuma evidência de que eles prolonguem a vida, ao contrário, seus dados alertam para a probabilidade de encurtá-la. Há um grande número de publicações científicas a respeito, mas poucas de boa qualidade.

Portanto, o objetivo desta edição do Clube de Evidência foi analisar os benefícios e malefícios da suplementação antioxidante na prevenção primária (na população geral) e secundária (pacientes com certas doenças), excetuando-se os casos de prevenção terciária (utilização da suplementação para fins terapêuticos). Para tanto, foi buscado no Pubmed artigos com os termos “antioxidant supplements” e “primary and secondary prevention” com um total de 12 artigos, sendo 8 deles revisões. Para discutir a questão, foi escolhido uma metanálise do JAMA (The Journal of American Medical Association), publicado em fevereiro de 2007: “Mortality in Randomized Trials of Antioxidant Supplemnts for Primary and Secondary Prevention”.
O artigo seguiu o método Cochrane Collaboration de seleção e separou dados de 68 trials randomizados, com um total de 232.606 participantes. Dividiu então os artigos em subgrupos de acordo com a qualidade metodológica e o risco de superestimar efeitos das variáveis. 47 artigos (69,1%) apresentavam baixo risco de superestimar dados (estudos duplo-cegos, boa aleatoriedade e acompanhamento) e 21 artigos (30,9%) apresentavam alto risco de superestimar dados. Analisou a heterogenicidade dos grupos, a qual não era significativa e permitia que os dados dos grupos fossem compilados. Dados relacionados às doses, duração da suplementação e a finalidade de prevenção primária ou secundária não foram estatisticamente significantes quando correlacionados com a mortalidade.


Os dados refletiam que o uso exclusivo do beta caroteno aumentou significativamente a mortalidade. Este efeito não foi significativo quando o mesmo foi combinado com outros suplementos. Após retirar os estudos que apresentavam alto risco de superestimar dados, o uso exclusivo ou combinado do beta caroteno foi relacionado significativamente com o aumento da mortalidade. O uso exclusivo ou combinado da vitamina A ou da vitamina E não aumentou significativamente a mortalidade; contudo, após retirar os dados dos estudos de alto risco, o uso exclusivo ou combinado de vitamina A ou da vitamina E foi relacionado significativamente com o aumento da mortalidade. O uso exclusivo ou combinado da vitamina C não aumentou significativamente a mortalidade, mesmo após exclusão dos dados dos artigos de alto risco. O uso exclusivo ou combinado de selênio apresentou diminuição significativa da mortalidade, contudo após extração dos dados dos artigos de alto risco, o uso exclusivo ou combinado do selênio não teve influência significativa na mortalidade. O índice geral de aumento de mortalidade foi de 5%.
Assim, concluiu-se que não há evidências de que a suplementação antioxidante tenha efeitos benéficos na mortalidade. E ainda que o uso exclusivo ou combinado de betacaroteno, vitamina A e vitamina E aumentam significativamente a mortalidade. Não há evidência que o uso de vitamina C aumenta a longevidade e faltam dados para refutar seu potencial negativo na sobrevida dos seus usuários. O selênio tende a reduzir a mortalidade, mas são necessárias mais pesquisas para elucidar a questão. Confirmou-se também que estudos que utilizam metodologia inadequada superestimam efeitos destas suplementações.

Goran Bjelakovic; Dimitrinka Nikolova; Lise Lotte Gluud; et al., Mortality in randomized trials of antioxidant supplements for primary and secondary prevention: systematic, review and meta-analysis. JAMA 2007;297(8):842-857 (doi:10.1001/jama.297.8.842)

Relatora: Luciana (81)TE AMO MINHA LINDA!

Como montar um clube da evidência?

A proposta do clube da evidência é baseada em experiências anteriores descritas de clubes da revista, adaptados para a realidade do estudante de Medicina da UnB. Algumas valiosas dicas foram retiradas do editorial publicado em 2004 (What makes evidence-based journal clubs succeed? Phillips and Glasziou Evid Based Med.2004; 9: 36-37) e mostraram-se fundamentais para a construção do clube, entre elas:

Organização cíclica: Revezar os papéis é fundamental para aprofundar o envolvimento do estudante com o clube. Contudo, na prática, definir os papéis na reunião anterior só tem funcionado para decidir quem será o relator. O anfitrião e o responsável por pedir a pizza tem sido decididos no início da reunião, sem que isso traga prejuízos para o desenrolar da sessão.

Pizza: Muitas vezes subestimada, a oferta de comida é fundamental para o sucesso das reuniões. Quem tem fome, tem pressa pra sair, e quem tem pressa pra sair não quer discutir o artigo apresentado. O que tem sido feito é pedir uma pizza a ser entregue na faculdade de saúde, cujo preço costuma ser dividido por quem está na reunião.

Qual questão responder? Ao contrário dos clubes da revista, que buscam respostas para questões clínicas específicas, o clube se propõe a trazer a ciência para o dia-a-dia. Desvendar mitos e descobrir tabus científicos é o seu grande objetivo, qualificando-se como um local para desenvolver a imaginação e os questionamentos, muito além de definir riscos relativos e terapêutica apropriada para determinada enfermidade.


Registro das reuniões: Nos clubes da revista tradicionais, a resposta à dúvida clínica é estruturada em formatos pré-definidos, normalmente BETs e CATs. Esse formato não se adequou a proposta do clube da evidência, então temos nos restringido a arquivar cópias dos artigos discutidos a cada sessão e divulgá-los neste blog.

Por fim, para montar um clube da evidência basta poucas pessoas, alguma desenvoltura em pesquisa de artigos (que é aprendida com o tempo), alimentação barata e divulgação do assunto da reunião previamente (email, quadro branco, cartazes...).

Um dos artigos que nos orientaram:
Rose Hatala, Sheri A. Keitz,Mark C. Wilson, Gordon Guyatt,Beyond Journal Clubs: Moving Toward an Integrated Evidence-Based Medicine Curriculum J GEN INTERN MED 2006; 21:538–541.